quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Uma velha, muito velha...


Ela é velha, muito velha. Vive numa casa com telhados de vidro, mas não atira pedras aos dos outros.

No centro da sua cozinha tem uma grande pedra...chama-lhe lar. É nesse centro que está o fogo, o fogo de Brigid, que alimenta a alma de todos os que lá passam, para comer a sua sopa, contar e ouvir histórias, pedir os seus conselhos ou simplesmente ficar a admirar aquela fonte mágica de vida, que nunca se apaga.

Diz-se que essa velha não tem idade, todos os seus filhos e netos já partiram.

Apesar da ausência de laços familiares, ela nunca está só, mesmo quando tem a casa vazia de gente.

Dizem que à noite se transforma, que é possuída por um demónio e que corre pela casa, formando redemoinhos, elevando todos os cacos e farrapos, que com ela rodopiam, voam, caindo intactos, de volta aos seus lugares precisos...

Dizem... é o que dizem... e porque dizem, têm a sua razão!

Aquela velha muito velha de dia é luz que acalma as almas e de noite é tormento que inquieta corações.

De dia todos a amam, de noite, todas a temem.

Mas alguns, muito poucos, se atreveram a conhecer aquela velha, nas suas noites...

Numa dessas noites, uma jovem, atraída por uma voz magnificiente, que unia céu e terra, entre o mais harmonioso e mais cavernoso que já tinha ouvido na sua existência, dirigiu-se até àquela misteriosa casa.

A habitual porta tornara-se um portal de madeira imponente, lá dentro estava tudo escuro, como a noite e lá em cima todas as estrelas brilhavam, embaladas pelo Velho Crescente.

O chão era terra, pura terra, revolvida, macia e envolvente.

"Descalça-te filha." Ouviu ela. Fascinada com o que estava a presenciar, anuiu e prosseguiu descalça.

Apercebeu-se que caminhava numa floresta, quando pisou uma raiz, e ao tentar agarra-se a algo, abraçou um voluptuoso tronco.

Seguindo a voz que a tinha chamado, naquela floresta, em noite negra, chegou perto de um fogo tão belo que cruzava os céus em tons de branco, vermelho e preto. Tão intenso, tão profundo que a fez chorar. E ali, estática a uns metros do fogo, ela chorou e chorou. As suas lágrimas pareciam não ter fim, aos seus pés a água corria, como um pequeno ribeiro que procurava outras fontes para fertilizar a terra.

Quando já nada mais tinha para chorar, purificada, sentido o seu coração maior que do que si mesma, tentou aproximar-se do fogo. No entanto, algo a impedia, uma força maior, uma parede de invisível.

"Despe as tuas roupas." Novamente aquela voz...

Vacilando, questionou-se: o que estava a acontecer? Porque tinha de se despir? Começava a sentir-se desconfortável naquele local que, olhando à volta, parecia apenas um sonho sinistro... Mas uma vontade imperiosa de chegar perto daquele fogo, despiu-lhe cada peça de roupa que vestia.

Ao ficar nua, começou a sentir o calor daquele fogo mais próximo de si, tomando cada parte do seu corpo, cada recanto. Chamas rodopiavam à sua volta e dentro de si, acariciavam a sua pele em fogo e queimavam-na em êxtase por dentro. O seu corpo deixou de existir para ser fogo conectado com a Terra e com o céu. Conseguia ver e tocar as estrelas e o Velho Crescente, abraçar as raízes profundas daquelas árvores milenares.

De si fluía um néctar, com todos os tons do arco-íris. Quando tocava o chão brotavam flores, ervas e rebentos de novas árvores. Pequenos animais aproximavam-se para se deliciarem.

Aquele fogo que se estendia ao céu e à terra tornava-se cada vez mais forte e cada vez mais quente, balançava, balançava, rodopiava, dançava... era luz na escuridão e escuridão na luz... aquela luz que atormentava os seus olhos...

"Come estas papas de aveia!"

"Humm? Papas de aveia? Mas o que aconteceu? Onde estou?! Aquele fogo..."

Um profundo suspiro e um sorriso...

Era assim que acordavam, no colo daquela velha, muito velha... Na casa da Grande-Mãe... Junto do seu fogo sempre-vivo, que nutre aqueles que a visitam...de dia ou de noite...

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